terça-feira, 11 de setembro de 2012

Arte, comunicação e luta...


No projeto Oca Digital, jovens Tupinambás aprendem a usar tecnologia para preservar sua cultura
e transformar a realidade de exclusão das populações indígenas
Aurea Lopes

ARede nº 83 - agosto de 2012

"EU QUERO MANDAR uma mensagem para a Justiça brasileira, para quem faz as nossas leis, senadores, deputados... que olhem para esse povo sofrido, que não suporta mais tanto sofrer! Um povo que foi massacrado no passado, está sendo massacrado agora, no presente... A gente precisa dessa terra para plantar, viver nossa cultura, o pouco que restou dela...". A fala emocionada do cacique Acauã, uma das lideranças do povo Tupinambá de Olivença, é registrada, em vídeo e fotos, por Guarauna, de 28 anos. Sem largar o celular com o qual faz a gravação, Guarauna também faz questão de falar, mesclando os papéis de autor e protagonista da produção: "Este território é nosso. É um absurdo estar abandonado, enquanto nós precisamos de terra porque a gente vive da caça e da pesca. Eles tiram o índio do lugar e depois deixam tudo abandonado, como a gente está vendo neste filme. O índio não quer mais ser refém dessa realidade desumana, sempre monitorado por pistoleiro, tirando piaçava em trabalho escravo".

O filme foi feito à beira de um riacho na aldeia Potyur, em uma das vinte fazendas retomadas por famílias tupinambás, em Ilhéus (BA), no mês de julho. Usado como arma para denunciar a luta de seu povo, o smartphone de Guarauna ganha uma força maior do que a de um arco e flecha nas guerras ancestrais contra a dominação dos brancos. A flecha atingia um único inimigo. O vídeo vai para as redes sociais, onde milhões de pessoas de todo o mundo, vão tomar conhecimento da realidade de exploração enfrentada pelos indígenas no Brasil. "Queremos que parem de poluir nossos rios, desmatar nossas florestas. Se o governo não cuida de preservar, o índio tem que fazer isso, porque o índio é a natureza. E a natureza é para todos, índios e não índios, não pode deixar acabar", ressalta Kaluanã.

Os jovens tupinambás Guarauna e Kaluanã fazem parte do projeto Oca Digital, realizado pela organização não governamental Thydêwá, que há dez anos atua no fortalecimento de comunidades nativas. "A ideia é a inclusão digital se tornar um instrumento de conquista de direitos e resistência para esses povos", diz Sebastián Gerlic, presidente da instituição. Na prática, a Oca é um ambiente de experimentação, um laboratório de práticas digitais, com oficinas e debates, onde jovens indígenas se apropriam de "conteúdos-produto digitais como vídeos, maps, mashups, soundclouds, instagrams, wallpapers, ringtones, fotografias, lifeinaday, fotografias 360°, passeio virtual". O objetivo, no entanto, não é a formação para o trabalho. E sim, a aplicação desse conhecimento em ações voltadas às comunidades. "Trabalhamos na vacina da lógica de mercado. Pensamos no fortalecimento da tecnologia como benefício para o coletivo, para a transformação social", acrescenta Gerlic. Toda a base conceitual do projeto se sustenta nos conceitos de colaboração, compartilhamento e arte livre, como indica o C invertido na logomarca da Oca Digital. Aliás, todos os sites de projetos da ONG são elaborados com a base em Wordpress e hospedados em servidores Linux (CentOs).

A Oca promove um módulo diferente a cada mês. Longe de uma formação linear, de cima para baixo, os participantes adquirem conhecimento técnico e trocam experiências em rodas de conversa com os facilitadores e especialistas convidados. Nesse modelo, aconteceu a oficina Retratos Pintados, em que os índios tiraram suas próprias fotos, imprimiram e fizeram intervenções artísticas com motivos nativos. Também houve a oficina Narrativas Audiovisuais, que rendeu três produções, um vídeo de ficção e duas animações com técnica stop motion. Outro módulo foi a Postesias Digitais, em que os índios postaram poesias no site do projeto. Um grupo de "oqueiros" e "oqueiras" fez ainda a cobertura da Rio +20. No mês de julho, muitas das produções, de texto e imagem, têm como foco a jornada de retomadas de terras – como o vídeo de Guarauna.

São duas turmas por dia, uma pela manhã e uma à tarde, no contraturno escolar. Cada turma é composta por cinco tupinambás e um convidado de outra etnia, que vem de sua aldeia e fica hospedado na sede da Thydêwá, que também fornece refeições e vale transporte aos meninos e meninas. Calline Chaves de Jesus, de 14 anos, mora na aldeia Tatama. Está no 9º ano e conta que veio para a Oca interessada em saber mais sobre comunicação e conviver com outras pessoas. Já tinha acesso à internet em lan houses. Tem Facebook e Orkut. Na "ocaoficina", viu como se monta e desmonta um computador e aprendeu a filmar com foco na imagem e qualidade de som. Calline quer fazer um vídeo sobre sua cultura. Dias atrás, a secretária do dentista perguntou se ela era índia e, diante da resposta afirmativa de Calline, ironizou, perguntando por quê ela não usava tanga. "Não gostei. Ela não precisava ter falado aquilo, pareceu que queria ofender", desabafa.

"O projeto trabalha com Recursos Educacionais Abertos (REA). Todos os conteúdos e produtos são publicados na internet, sob diferentes licenças Creative Commons", esclarece a pedagoga e diretora do projeto, Márcia Cardim. Para isso, foram adquiridos sete notebooks, 12 celulares inteligentes com plano de dados de 250 MB, uma câmara fotográfica profissional, data show, caixas de som, impressora colorida. Um link dedicado de 2 Mbps faz a conexão, com sinal que vem de Itabuna. O provedor local custa R$ 900 por mês. Há um mês, chegou uma conexão Velox, de 5 Mbps.
"Vamos abrir o sinal para a comunidade do entorno da Oca Digital", anuncia Gerlic.

Morador da aldeia Caramuru, em Pau Brasil, Hemerson Dantas dos Santos gostou tanto do que viveu na primeira turma do Oca, que voltou. Aluno do 1º ano do curso superior de química, quando se graduar ele deseja trabalhar na área de ambiente. Hemerson participa de outro projeto da Thydêwá, o portal Índios Online (ver página 27): "Foi lá que aprendi a entender a internet". Craque no mouse, ele tem um notebook e um celular com câmera. Fez parte do grupo que produziu o vídeo "Sementes", elaborado – e publicado – como um conteúdo livre para remix. Mas o YouTube assustou a galera, que teve de tirar o filme do ar: "A gente recebeu um aviso porque usou uma música que não era livre. Vamos refazer, talvez com um som de maracás". Hemerson agora está integrando o projeto Jovens Multiplicadores de Cultura. Vai atuar na divulgação dos projetos digitais da Thydêwá.

www.ocadigital.art.br


SOLO FÉRTIL PARA INICIATIVAS SOCIAIS
Esperança da terra. O significado da palavra Thydêwá, que pertence ao idioma Pankararu, tem sido respeitado à risca, desde que a organização não governamental foi fundada, há dez anos, por um grupo de índios e não índios. Criada sob o compromisso de "realizar ações em favor de toda vida, em favor da Mãe Terra", a instituição faz uma forte aposta no uso das TICs para o desenvolvimento das comunidades indígenas. O presidente, Sebastian Gerlic, conta que a sede, em Ilhéus (BA), está sempre em atividades com esse fim. O projeto Oca Digital é apenas o mais recente. A instituição – www.thydewa.org – já se destacou e ganhou prêmios por outras iniciativas que apoiou e hoje andam com as próprias pernas.

O maior exemplo é o portal Índios Online – www.indiosonline.net –, resultado de uma parceria entre a Thydêwá, a Brazil Foundation e a embaixada dos Estados Unidos no Brasil. Voluntários de diversas etnias publicam notícias dos vários povos, materiais em texto, fotos e vídeos sobre suas culturas nativas e integram uma rede social focada nas questões indígenas. São divulgados, por exemplo, acontecimentos das aldeias, depoimentos de lideranças, informações sobre as lutas pela demarcação e retomada de terras.

Outro projeto, criado em 2011, começa a decolar: Índio Educa – www.indioeduca.org. Trata-se de um repositório, desenvolvido e iniciado por índios universitários, onde são postados materiais de apoio pedagógico com conteúdos indígenas. A proposta é subsidiar os professores para que conheçam a diversidade das etnias. "O Brasil sabe pouco sobre seus povos indígenas. Quando se fala em índio, na escola, sempre tem uma carinha pintada. Mas poucos sabem que as pinturas variam de povo para povo, assim como variam as construções, as línguas... É preciso mudar essa visão estereotipada", diz a professora indígena e linguista Maria Pankararu, uma das integrantes do Índio Educa.

A Thydêwá também lançou um projeto de economia solidária, o R.I.S.A.D.A. - www.risada.org. Aparentemente, o endereço de internet abriga um site onde se divulga e se vende artesanato. No entanto, a proposta é mais abrangente. "Após um debate sobre o que é a economia solidária, o grupo que concebeu o portal concluiu que o foco não é apenas a venda, mas o fortalecimento cultural dos povos", diz Gerlic. Além de comprar ou fazer encomendas, o visitante é levado a conhecer as características de cada peça, a história, a simbologia, o processo de produção.


AH, ESSA GLOBO ...
Os meninos e meninas da Oca Digital puderam mostrar que estavam, de fato, aprendendo muito, não apenas de técnica, mas de cidadania, quando foram procurados pela Rede Globo, interessada em filmar nas aldeias tupinambás. A reportagem virou objeto de aprendizado para a galera da Oca, cujo foco de atuação é exatamente a produção audiovisual. Carlos Alberto conta que a reportagem foi tema de uma roda de conversa sobre a cobertura da emissora, de atividades de elaboração de vídeos e até foram esboçadas propostas de roteiro. "Fizemos uma lista de perguntas que eles poderiam fazer para nós e outras perguntas que nós faríamos a eles", diz Henry Christian.

Quando os jornalistas e cinegrafistas chegaram para fazer a matéria, para decepção dos oqueiros e oqueiras, nem quiseram entrar na sede da Oca. Foram logo pedindo pra ir a campo. Levados à aldeia Tupã, a surpresa: "Eles nem descarregaram os equipamentos. Disseram que aquela aldeia não servia e foram saindo, pedindo para ir para outro lugar. Todo mundo ficou com cara de bobo...", conta Júnior.

Levada à aldeia Itapuã, a Globo chegou e foi filmando, "sem pedir licença às lideranças", como conta Carlos Alberto. Foi então que os jovens se reuniram para discutir o que fazer em relação ao que foi considerado uma "falta de respeito ao povo indígena". Resultado: os meninos e meninas convocaram a equipe global, disseram o que pensavam e exigiram um pedido de desculpas aos caciques. O pedido foi feito. E a história toda registrada em mais uma produção Oca Digital.

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